Épico.
A nova edição dos Trabalhadores do Comércio é uma obra que vai perdurar no tempo independentemente do sucesso ou insucesso de vendas e das críticas que venham a ser, ou não, escritas. Admito que seja complicado analisar com rigor um trabalho destes quando se tem pouco tempo disponível. Isto porque “Das Turmêntas Hà Boua Isperansa” é constituído por um livro autobiográfico de 230 páginas que aborda os anos 80 (entre 1980 a 1990), acrescido de um novo álbum de estúdio com 12 temas, 9 deles inéditos e 3 versões. O disco foi gravado ao longo dos últimos anos e o livro foi crescendo à medida que os meses passavam.
Histórico.
Ler este livro é mergulhar na génese da música eléctrica em Portugal, conhecer episódios surpreendentes, sobressaindo uma contextualização sociológica de toda uma época essencial para aquilo que viria a ser a indústria da música moderna no nosso país. Ao leme da escrita esteve Sérgio Castro, que complementou o texto com aproximadamente 200 fotografias, incluindo notícias da imprensa. Esta edição revela um cuidado ímpar em todos os detalhes, desde a componente gráfica à escolha das imagens apresentadas ou das histórias que nos são narradas. Nada foi descurado ou deixado ao acaso, o que transforma este livro num documento histórico imprescindível para um melhor conhecimento do período mais conturbado e movimentado da música rock portuguesa.
Revolucionário.
O novo álbum que acompanha o livro é uma surpreendente demonstração de vitalidade criativa, instrumental e musical, com doses brutais de crítica mordaz à classe política que nos dirige. Apesar de manter os traços habituais, com letras irónicas “à Porto” e bem-humoradas, a escrita sofre um upgrade com quantidades suplementares de intervenção política e social. A defesa do Norte enquanto região ou nação autónoma surge logo na abertura, com “Hino à Desanexação”, uma polémica composição de João Médicis – o ex-puto – e com voz principal do próprio. É uma canção épica, em que participam as Vozes da Rádio e Carlo Torlontano, na Trompa Alpina. O rock encontra-se aqui em doses elevadas e as três primeiras canções – “Hino à Desanexação”, “A Rebulussom” e “Gladiador” – rebentam com a escala quando comparamos este disco com qualquer outro que os Trabalhadores produziram até hoje. Se “Hino à Desanexação” é um grito pungente por uma nova regionalização, o tema seguinte, “A Rebulussom”, é um berro indignado pela sociedade em que nos transformámos: “É o sultão da energia, é o rei do remédio, é o que vende a pistola ou financia o assédio. Vende o craque da bola, manda homens p’ra luta. É o que nunca dá a cara... É o filho da puta!”. A terceira canção, “Gladiador”, fecha uma triologia temática. “Vou-me embora, preciso de ir / Nem para trás quero olhar / Tenho pressa de partir / e a cabeça a rebentar” é o desconforto que culmina numa partida, eventualmente, uma saída do país. A emigração como solução eterna dos problemas perpétuos da nossa nação. A letra tem a particularidade de ter sido escrita há muitos anos por António Garcez e revela-se tão actual como no tempo dos Stick. A composição da música é partilhada entre Garcez e Sérgio Castro e é um rock a abrir, melódico, orelhudo e comercialmente potente. As guitarras de Sérgio Castro, João Médicis e de Pony, o baixo de Miguel Cerqueira, o piano e o Hammond de Jorge Filipe Santos e a bateria de Álvaro Azevedo são demolidores. Curiosamente, António Garcez partiu rumo aos Estados Unidos pouco depois de ter escrito este tema. A nova versão de “A Cansom Quiu Abô Minsinoue” é um bolero com Marta Ren na voz. Esta canção é outro momento ímpar deste disco. Após Marta Ren, é a vez de Daniela Costa assumir a voz principal de “Dá-lhe Corda Ao Cucu”, numa demonstração de democracia interna pouco habitual na esmagadora maioria dos grupos portugueses. Sem limitações de protagonismo, todos participam activamente no resultado final, sendo reconhecidos e tendo o seu próprio espaço. Também Diana Basto – uma das três excelentes vozes femininas do grupo –, canta “Ajuste Rectal”, mais um tema numa escrita muito “à Trabalhadores” e com crítica política acentuada. Mais à frente, “Baisse Bíar” é um trocadilho bem conseguido com a cerveja de trigo weisenbeer. Enfim, as boas canções vão-se somando e destacamos mais dois temas fortes. “O Voto Útil” – com nova e vincada crítica social – e “No Colo do Douro”. Esta última remete-nos para sonoridades pop, com reminiscências melódicas que nos recordam grandes bandas britânicas dos anos 60. “No Colo do Douro” é uma canção orelhuda e um tema forte para as nossas rádios.
A surpresa final deste álbum encontra-se na última faixa. “Fantoxada” é uma música de Jorge Filipe Santos, alternativa, industrial, com recurso a programações e que usa uma célebre frase proferida por um antigo governante e actual comentador político: “Isto é uma fantochada sem nome”. Pelo contrário, este novo disco dos Trabalhadores é um passo em frente, é uma evolução coerente com aquilo que já tinha sido o CD anterior, “Iblussom” (2007). Em “Das Turmêntas Hà Boua Isperansa” sobressai um cuidado instrumental notável, arranjos límpidos e eficazes, uma produção certeira e um som global cheio, com profundidade, com vida, fruto, também, da masterização realizada nos Estados Unidos, por Stephen Marcussen, da Marcussen Mastering. (*) Este álbum mostra-nos um grupo maduro, no uso máximo das suas potencialidades e sem sofrer o desgaste do tempo ou da idade. Tudo isto é francamente impressionante quando verificamos que Álvaro Azevedo ou Sérgio Castro já estão no mundo da música desde os anos 60 e ainda têm capacidade para nos surpreenderem e apresentarem algo novo e fresco. Por vezes, quando escutamos um álbum de um músico veterano que nos surpreenda positivamente, pensamos que aquele disco poderia ser o primeiro da sua carreira. Pela frescura ou criatividade que encerra. Porém, este “Das Turmêntas Hà Boua Isperansa”, apesar de ter todas essas características, jamais poderia constituir um disco de estreia. É que nunca uma banda em início de carreira consegue potenciar a experiência que aqui se respira. E a experiência é, quando inteligentemente utilizada, essencial na execução de qualquer trabalho. Ou seja, este álbum mantém todo o espírito característico dos Trabalhadores, junta-lhe uma pitada adicional de evolução, polvilhado por uma superior energia e experiência. O resultado só podia ser este, com várias canções como potenciais hits. A década de 80 ficou para trás. Sem saudosismos, os Trabalhadores do Comércio comprovam que o presente é bem melhor.
Genial.
Podia ser um livro excelente acompanhado por um disco da treta ou um fantástico álbum acrescido de um livreco com pouco interesse, todavia, o que temos nas mãos vale individualmente pelo CD ou pelo livro. São duas obras imprescindíveis, com a vantagem de virem em conjunto! Os Trabalhadores do Comércio dão-nos, com este package de luxo asiático, uma lição de profissionalismo e criatividade, só ao alcance de meia dúzia de nomes da nossa praça. Curiosamente, pertencem à geração que construiu os alicerces da indústria musical eléctrica em Portugal e, tal como outros nomes grandes do boom, nomeadamente, Rui Veloso ou os UHF, têm razões de queixa em relação à comunicação social especializada em música neste nosso país. “Das Turmêntas Hà Boua Isperansa” é um trabalho mais do que essencial. É genial.
(*) http://www.marcussenmastering.com/engineers/stephen_discpic.php
PS: E nem falei da capa, da responsabilidade de Alberto Almeida… No fundo a capa é o espelho do trabalho. Uma obra de arte!