UHF – Lisboa no centro da guerra
Os projectos que só tocam em Lisboa, sem possuírem um circuito de concertos pelo resto do país, não possuem sustentabilidade concreta e o seu futuro é, geralmente, bastante limitado. Porém, quando um grupo mantém uma agenda preenchida ano após ano, mas não apresenta espectáculos na capital, corre o risco de quase desaparecer do universo mediático português e perder o comboio das estrelas maiores. Os UHF tiveram uma ascensão meteórica em 1980 e mantiveram-se sob as luzes da ribalta até ao momento em que António Manuel Ribeiro sumiu dos grandes concertos na cidade de Lisboa. Recordo-me, com bastante nitidez, dos espectáculos no Rock Rendez Vous (1989), Feira Popular (1989) ou Coliseu (1992) que permitiram que aos sucessos populares se juntassem as produções que funcionam como mola nas carreiras musicais. Ao enveredarem, unicamente, pelo designado “circuito de província”, os UHF iniciaram um lento processo de distanciamento dos centros de decisão. Se a isto somarmos outros factores como a constante mudança de editoras, troca de músicos ao ritmo do samba, a rebeldia e afrontamento que o seu líder António Manuel Ribeiro foi mantendo com diversas personalidades da nossa praça e a ausência de discos nas prateleiras das discotecas (alguém sabe, ao certo, quantos álbuns de originais têm os UHF?), o resultado é o que se poderia esperar.
Aos poucos, muito lentamente, os UHF perderam o estatuto que tinham conquistado em mais de uma década de guerra, permanente e intensa. António Manuel Ribeiro não poupou munições e, durante os anos oitenta, disparou contra jornalistas, editores e demais intervenientes da insípida indústria musical nacional que funcionava entre copos vertidos no Bairro Alto. Lutar contra o “status quo” é um dos primeiros mandamentos de um verdadeiro rocker e António Manuel Ribeiro, quer se goste da sua personalidade, ou não, é, de entre todos os cantores rock nacionais que atingiram o estrelado em 1980, o único que transpira atitude rock por todos os poros. O cognome Canal Maldito não foi fruto do acaso, nem produto fabricado pelo marketing.
Cada tiro no porta-aviões implicou mais anticorpos e, apesar deste esforço bélico ser de louvar, na verdade, a ausência de uma estrutura interna sólida impossibilitou um crescimento continuado, num percurso de escaladas e de tombos violentos. Para ser justo, não posso esquecer a saída de Cristina Loureiro – o cérebro administrativo – dos escritórios da banda, no início dos anos 90. Quem se habituou ao seu profissionalismo, sabe bem o que representa uma pessoa com o seu perfil, que, pessoalmente, comparo ao da saudosa Marta Ferreira, dos Xutos. Todos os factores referidos tiveram um reflexo negativo na carreira do grupo.
Não obstante, durante vários anos, os UHF foram o expoente máximo do rock português e, durante alguns anos, foram mesmo, a única banda rock verdadeiramente profissional neste país. Entre 1980 e 1985, revelaram-se campeões de popularidade, de conflitos e de espectáculos ao vivo. Entre 1988 e 1993, voltaram à ribalta com sucessos como “Na tua cama”, “Hesitar” ou “Menina estás à janela”. Depois disso, existiram demasiados baixos entre poucos altos. Após a edição de “69 Stereo” (1996), António Manuel Ribeiro fechou a última porta sobre o passado, “despachando” do grupo todos os elementos da sua geração e indo buscar jovens músicos da idade do seu filho e guitarrista, António Côrte-Real.
Foi esse o momento da “refundação” da banda. O trabalho seguinte, o CD “Rock É! Dançando na noite” (1998) poderia ter conseguido, no tema “Quando (dentro de ti)”, o mesmo efeito de “Na tua cama”, dez anos antes. Não sucedeu. Os tempos eram outros, as rádios começaram a evitar músicas do grupo e uma excelente canção passou ao lado do grande público. Situação semelhante ocorreu com potenciais sucessos como “Dança comigo (até ao sol nascer)” (1999), “Angie” (1999) ou “A lágrima caiu” (2003). Os UHF não voltavam ao zero, mas eram obrigados a percorrer um sinuoso e lento caminho, tendo em vista a reconquista do ouro perdido. Um trabalho árduo, com imensos percalços e resultados vagarosos, surgindo aos poucos.
Até que, em 2006, na sequência do sucesso de “Matas-me com o teu olhar” (2005), os UHF compreenderam que o regresso aos grandes palcos era uma necessidade e uma exigência. O risco assumido foi o habitual e António Manuel Ribeiro lançou-se aos Coliseus de forma destemida. A sala não esgotou, contudo o concerto no Coliseu de Lisboa mostrou que a banda estava preparada para regressar às grandes produções. Foi realizada uma gravação que irá sair, brevemente, em DVD, com toda a envolvência do público a que poderemos assistir.
E eis que, no último ano, começaram a surgir reedições dos primeiros discos; a escassa imprensa musical, de uma nova geração, começa a compreender a história do fenómeno chamado UHF e, admitimos, perdeu o receio de ser espancada pelo seu líder; o aproximar dos 30 anos de carreira parecem ter proporcionado, a António Manuel Ribeiro, uma segunda fonte de juventude e de determinação.
Para que isto fosse possível, muito contribuiu a estabilidade que se tem vivido no seio do grupo. Ivan Cristiano, Fernando Rodrigues e António Côrte-Real estão mais maduros, mais seguros e com a atitude rock que fez dos UHF uma máquina infernal.
A digressão dos 30 anos começou, de forma positiva, na Aula Magna. A sala encheu, o reportório foi bem seleccionado e quem esteve presente saiu claramente satisfeito com o rock que se escutou. Os textos publicados na imprensa foram unânimes no tecer de críticas positivas, numa estranha consensualidade nunca anteriormente registada. Estavam os dados lançados para a digressão e para o anunciado concerto de encerramento destas comemorações de 30 anos que iria ocorrer na sua cidade Natal. O regresso para um espectáculo em Almada só faria sentido se a aposta fosse em grande.
A bomba em tempo de Natal
A noite estava fria e as pessoas foram chegando de forma ordeira e espaçada. Um primeiro olhar para os espectadores permitiu constatar que estávamos na presença de um encontro de gerações, com especial destaque para o intervalo entre os 30 e os 50 anos. O ambiente era de expectativa e respirava-se um certo respeito pela solenidade do momento. 30 anos de carreira não são uma comemoração banal no nosso meio musical, sobretudo, quando nos referimos a um grupo rock.
Nos últimos anos, a estrutura base dos UHF consolidou-se, o núcleo de músicos na banda tem permanecido estável e a nova geração cresceu e respira um mesmo objectivo. Claro que os tempos são outros e ninguém espera, nem exige, que António Côrte-Real seja igual a Renato Gomes, nem que Fernando Rodrigues assuma a personalidade de Carlos Peres. A tarefa é duplamente mais complicada e cruel para os actuais elementos. Todavia, os últimos concertos a que tenho assistido mostram que o renascimento mediático do Canal Maldito está mesmo ali ao lado. O excelente trabalho de reedições de material há muito esgotado está a permitir que uma nova geração conheça a obra de António Manuel Ribeiro e dos UHF. É neste cenário que surge o fecho das comemorações de 30 anos.
Após a Aula Magna, este concerto só fazia sentido se fosse realmente especial. E foi. Na verdade, foi tão especial que somente quem assistiu poderá compreender o que sucedeu dentro daquelas quatro paredes em Almada. Não é simples falar deste concerto. Aceito que estou com imensa dificuldade em apresentar uma crítica a algo que roçou a perfeição. Admito que o crítico também tem direito a entusiasmar-se, apesar dos meus amigos íntimos serem testemunhas do meu nível de frieza e exigência na análise pós concertos – que o digam os k2o3 que saltavam eufóricos do palco e me encontravam com um sorriso amarelo fruto de uma mescla de satisfação pelo dever cumprido e de observações de aspectos a serem melhorados.
No dia 20 de Dezembro, na Academia Almadense, em plena quadra natalícia, fui testemunha da detonação de uma bomba rock. Os momentos intensos foram tantos que poderemos considerar que assistimos a um concerto “tântrico”. A surpresa começou na duração do espectáculo. Mais de 3 horas para um alinhamento de 32 canções. Depois o alinhamento, foi, ele também, uma boa surpresa. Não se escutaram temas como “Sou Benfica” ou “Foge comigo Maria” – canções das quais nunca fui simpatizante – e não se escutaram sequer clássicos como “Modelo fotográfico”, “Na tua cama”, “Brincar no fogo” ou “Menina estás à janela”. Estas 32 canções foram um retrato fiel de uma carreira, com temas mais comerciais como “Cavalos de corrida” e outros menos previsíveis como “Velhos tamborins”. Sentiu-se que todo o concerto fora tratado com um cuidado muito delicado, pensado ao mais ínfimo detalhe, com vista a proporcionar um impacto crescente. Descrever o que sucedeu naquela noite em Almada é falar sobre emoções e as emoções são de difícil explicação por palavras objectivas e directas. Salientar o virtuosismo técnico dos músicos presentes seria tão anedótico como escamotear que a esmagadora maioria dos espectadores conhecia todas as canções algum dia gravadas pelos UHF.
A sala estava cheia de admiradores dos UHF. Isto poderá levar alguns a presumir que a noite estava antecipadamente conquistada. Apesar deste raciocínio ser tentador, na realidade, o público presente estava expectante, pronto a ser conquistado, se… se o conseguissem conquistar. É que, dentro de cada fã dos UHF encontra-se um crítico impiedoso e sempre pronto a vincar as suas divergências. Perante aquela plateia, António Manuel Ribeiro sabia que tinha de se esforçar vezes sem conta. No fundo, quanto maior fosse o risco assumido, maior o resultado que se poderia atingir. Naquela noite, o céu foi o único limite.
E que houve assim de tão especial neste concerto?
Houve uma gaita-de-foles de Tozé Morais que percorreu a sala antes de subir ao palco, quando se revelou “O povo do mundo”.
Houve António Manuel Ribeiro, tal profeta de uma geração, a ser mestre na rebelião de consciências e a uivar frases cortantes, contundentes, próximas do clímax, como na assombrosa “Sonhos na estrada de Sintra”.
Houve Miguel Ângelo que, com António Manuel Ribeiro, arrancou um arrepiante “Podia ser Natal”.
Houve um momento digno de um mundo perdido, uma ocasião raríssima de presenciar e que abriu o primeiro encore: Carlos Peres, Renato Gomes e António Manuel Ribeiro incendiaram a sala com “Noites lisboetas”, “Voo para a Venezuela”, “Devo eu” e “Estou de passagem”, todas em formato acústico.
Houve uma atitude a roçar o punk-rock, digna dos primeiros anos, sem qualquer cedência mais popular.
Houve “Um mau rapaz”, que fez vibrar mesmo a bactéria mais soturna da sala.
Houve “(Fogo) Tanto me atrais”, “Velhos amigos (onde estais)” e “Esta dança não me interessa”.
Houve, ainda, um “Rapaz caleidoscópio”, com outra actuação endiabrada e frenética de um Renato Gomes que tem de repensar o que anda a fazer da sua carreira enquanto músico.
Houve uma comunhão rock entre todos os intervenientes, que culminou com um êxtase colectivo, aquando do fecho com “Hesitar” – com direito a harmónica de Tozé Morais.
Mas, vou ter de ir mais longe nesta análise.
Houve ainda outro momento.
Houve Fernando Rodrigues (piano e guitarra acústica), Ivan Cristiano (bateria), António Côrte-Real (guitarra), Carlos Peres (baixo), Renato Gomes (guitarra) e António Manuel Ribeiro (voz) em 3 canções que constituíram o momento mais importante de toda a carreira dos UHF. A História do rock português escreveu um capítulo único naqueles minutos mágicos. Aos actuais e pujantes UHF, juntou-se a pólvora demolidora de Carlos Peres, o baixista mais marcante do rock português, e associou-se Renato Gomes, um guitarrista de outra galáxia, que expeliu doses brutais de criatividade e de electricidade incontida. Os diálogos de guitarra entre Renato Gomes e António Côrte-Real, o incendiário discurso de António Manuel Ribeiro, a inesgotável energia de Ivan Cristiano, a entrega furiosa de Fernando Rodrigues no baixo, no piano e em todos os instrumentos que tocou ou a chama insubordinada que se pressente em cada acorde rebelde de Carlos Peres. Estes seis homens que partilharam o palco ao longo de “Concerto”, “Jorge Morreu” e “Geraldine” são a melhor formação dos UHF e mostraram ao público duas realidades: que o rock dos UHF tem de ser sempre assim e que, no futuro, o grupo chegará onde os seus elementos o desejarem.
Em certas alturas deste espectáculo, fechei os olhos e retrocedi para a época de ouro dos UHF. Quando os abri, verifiquei que estava a testemunhar uma noite de platina. O espectáculo na Aula Magna foi excelente. Este, na Academia Almadense, foi “o espectáculo”. Não me recordo de quando foi o último, mas já tinha saudades de um concerto rock desta dimensão. Quero mais!
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